QUESTÃO DE SINTONIA

Lembro os leitores que na Bienal do Livro deste ano, em São Paulo, lançarei, pela Edtiora Nova Alexandria, ZONA SUL, o terceiro romance de minha série ERA UMA VEZ NO MEU BAIRRO.
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Este
texto nasceu e cresceu da necessidade de sistematizar algumas experiências
doces e não tão doces adquiridas durante a minha atividade de professor de
Língua Portuguesa de Ensino Fundamental e de Ensino Médio do ensino regular e do supletivo. A
bem da verdade, as experiências “não tão doces” estimularam-me mais à produção
deste texto do que as bem sucedidas.
Isto porque me pareceu não haver sentido em refletir acerca de coisas que deram certo num ou noutro momento. Não sei se erro, mas parece-me que as coisas que dão certo morrem potencialmente: nosso time foi campeão; ótimo, mas o que fazer dessa realidade, a não ser comemorar? Nosso time foi mal no torneio: há já aí uma questão viva a ser tratada, pensada, mastigada.
Ao
mesmo tempo professor do curso regular de Ensino Fundamental, durante o dia,
e do curso supletivo, durante a noite,
senti a necessidade de estabelecer comparação entre as duas atividades. Por
motivo de objetividade, tratarei apenas da questão leitura-literatura, que é o
tema central destas reflexões. E por motivo de ordem ética não se especificará
o estabelecimento de ensino em que as experiências se deram.
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Os
estudantes do curso regular estavam habituados com as famosas “fichas de
leitura”. Do total de aulas semanais de Língua Portuguesa, apenas duas aulas
estavam reservadas à leitura e à produção de textos, nas quais o item
“ortografia” era a questão dominante, da 5a. à 8a. série. Mas o item
“ortografia” dividia espaço ainda com a atividade de leitura silenciosa. As
restantes aulas consistiam em overdoses
de manuais de gramática.
No curso supletivo a questão era dramática: língua portuguesa tornara-se sinônimo de análise sintática. Não é necessário dizer que as aulas de Língua Portuguesa tornaram-se a maior unanimidade da escola: eram absolutamente detestadas.
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Confesso
que, de início, foi uma grande tristeza descobrir que a língua de Camões, de
Pessoa, de Machado, de Graciliano, de Amado, de Drummond, de Mário, de
Bandeira, de Clarice, de Braga, de Gullar, de Trevisan, de Vinicius, de Chico,
de Gil, de Cartola, de Elis, de Dalva,
de Maria, de João, de José, de Ednalva, minha e tua era detestada.
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Que
fazer?
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Obviamente,
primeiro, comer o pão que o diabo amassou.
Depois, mas não muito depois, na verdade quase junto a isto, iniciar uma
campanha de amplo esclarecimento das opiniões conflitantes, das divergentes,
das opostas e das radicalmente contra
qualquer mudança.
De
início a campanha sofreu ataques. Mas depois, sofreu verdadeiros bombardeios.
Enfim, as forças contrárias eram tão poderosas que decretaram que eu era um
chato. E que não valia a pena perder tempo comigo. Então decretaram que minha
punição seria implementar aquilo pelo que eu tanto os aborrecia: o simples
direito de, alterando o planejamento, reservar à leitura, como conteúdo
curricular, não apenas como prática de ensino, o espaço que lhe é devido.
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Foi aí
que começou o inferno deles.
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As
5as. e 6as. séries toparam de saída. Combinamos as mais incríveis técnicas de
leitura. Dentre elas, algumas foram torpedeadas de saída. O conto “O ciclista”,
de Dalton Trevisan, fez sucesso e polêmica - e barulho, muito barulho.
Combinou-se
que iniciaríamos a leitura, todos os quase quarenta alunos mais este professor
que vos escreve, numa velocidade tão lenta que “desse nos nossos nervos”.
Paulatinamente acelerando a oração, teríamos de atingir o máximo de velocidade
de leitura,, sem comer palavras ou sílabas pelo caminho, e o máximo de harmonia
entre as vozes.
Em
uma aula, uma aula, não mais que uma aula, a técnica estava implementada. E os
erros coletivos e individuais relativos à aprendizagem da técnica eram
saboreados às gargalhadas.

Propôs-se que alguns estudantes fossem selecionados para testar a técnica individualmente. Problema instalado, pois o clima de segurança e de não-censura estimulou todos a candidatarem-se.
Passado
um tempo, descobriu-se que toda a turma treinava em casa para a aula de
leitura. Égalité, liberté, fraternité.
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Fui
chamado à diretoria do estabelecimento: as técnicas de leitura estavam
atrapalhando as aulas dos outros colegas.
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Os
alunos da 7a. e da 8a. séries foram reclamar à diretoria que o professor de
português não ensinava as novas técnicas de leitura que ensinava às 5as. e 6as.
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Numa
reunião com os outros professores, acertaram-se pontos-de-vista. Programando e
deslocando conteúdos, as práticas de leitura foram mantidas e ninguém se sentiu
prejudicado. O professor da sala vizinha
àquela em que seria aplicada a ruidosa técnica de leitura programaria sua aula
de modo a que as práticas pedagógicas não entrassem em contradição.
Obviamente
que problemas continuaram a ocorrer. Todavia eram já problemas de adequação
concreta, tais como: “Amanhã vou aplicar aquela técnica do barulho, tem jeito?”
ou “Amanhã vai haver prova, será que dá pra...” É lógico que dá. Sempre acaba
dando.
Mais
tarde foi que refleti sobre o fato de que as práticas adotadas nas aulas de leitura promoveram uma verdadeira
alteração nas práticas dos outros colegas. Como que com susto verifiquei as
proporções e extensões das atividades a que me propusera: minha ação, transformada pelas ações de
outros colegas e de professores do curso superior, agiu sobre a ação dos
outros colegas, numa reação em cadeia.
Compreendia-se a resistência: era todo um cotidiano escolar em vias de ser alterado, não apenas o fórum interno das aulas de língua portuguesa.
Logo
outros professores estavam experimentando novas técnicas e práticas em suas
disciplinas específicas. Já se conversava sobre práticas adequadas a conteúdos,
relações entre práticas disciplinares, resultados positivos ou negativos de
práticas pedagógicas etc.
O
curso supletivo foi outra história. Os professores já insistiam por maior
criatividade e liberdade na aplicação dos seus conteúdos específicos. Vencida a
resistência da direção do estabelecimento, o problema centralizou-se nos estudantes.
As
duas maiores de resistências vieram na forma de oposição à leitura coletiva de
textos: muitos achavam “infantilidade” semelhante prática, outros argumentavam que “ninguém poderia
obrigá-los a ler”. Dois enfrentamentos, duas barreiras a serem transpostas.
Tanto melhor que fossem duas - se os antigos estivessem certos “quem tem um não tem nenhum”.
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E tentaram ler Mário-Mário, para tanto realizando pequena pesquisa sobre o poeta. Houve divergências sobre como Mário leria o seu próprio texto. E houve divergência sobre quem era Mário. E aqui não houve sintonia. Mas até aí...
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